O grão de areia corria no tapete ventoso e era empurrado para cá e para lá. Tentava segurar-se o mais possível no tapete feito de vento e de nuvens.Sabia que se caísse na imensidão da areia seria apenas mais um entre milhões de outros grãos de areia, seria apenas outro a quem as pisadas e o poderoso mar desfigurariam.
Descobriu um dia, um daqueles dias em que as nuvens se zangam e ficam com a cara negra, que conseguia manter-se no ar e que o ar era... tudo. Nem conseguia dizer o que sentia lá em cima. Podia tentar e relatar que sentia o friozinho suave no rosto, como uma festa, podia dizer que tudo à volta era mais bonito, que o sol era mais quente, mas era tanto mais o que sentia que não era possível descrever verdadeiramente o que lhe estava no coração.. Era uma mistura tão grande e intensa de sensações e emoções que a única coisa que conseguia era desfrutar daqueles momentos. Porém, estar naquele tapete de vento não era fácil, era ser constantemente empurrado para um lado e para outro e o que se pretendia era que o grão aceitasse, como todos outros, ser um pequeno pontinho que servia de toalha ao mar e aos pés calcadores. Mas ele resistia! Por vezes, conseguia abrigo num pássaro de asas brancas, que por ali passava, e durante muito tempo ficava naquele aconchego que só se sente nos braços de uma mãe. Outras segurava-se apenas, ou deixava-se ir, dependia da sua força e do seu cansaço... O grão de areia continua lá em cima, porque acredita que aquele é o melhor lugar para estar.
Há uns anos li um livro que se chama o Ano do Pensamento Mágico, escrito(se a memória não me atraiçoa) pela jornalista Joan Didion. Em traços gerais a estória relata a mudança de vida depois da morte do marido(com um ataque cardíaco) e, acima de tudo, a tomada de consciência da realidade desconcertante que todas as coisas podem mudar em minutos. Estes dias tenho pensado muito nesta questão da fragilidade da vidas/vidas e de como tudo muda com a falta de uma pessoa, com a mudança de um hábito ou, depois de um acidente. Por muito que pareça lugar comum dize-lo não devemos esquecer a fragilidade de tudo o que temos, da nossa própria fragilidade e "agarrar" tudo o que é bom como se fosse uma bóia de salvação. Somos náufragos, todos nós e não é porque nos enchemos de coisas materiais que deixamos de ser pseudo afogados. Essas coisas apenas iludem, momentaneamente, os nossos sentidos e a nossa razão. Nada do que possamos comprar é mais importante que o afecto, a amizade e o amor. Agarrem-se com força a estas bóias e não esqueçam: Tudo muda num segundo!
Os meus pés dançavam pelo empedrado daquela rua estreita onde cheira sempre a roupa lavada. Ecoava, nos meus ouvidos uma espécie de música celta, longínqua, mas presente e companheira. Olhei distraidamente o meu reflexo numa montra, estava com ar cansado e abatido, talvez tivesse andado demasiado, pensei. Desviei o olhar para o interior do vidro e encontrei a um canto, quietinho, um medalhão dourado. O medalhão abria e dentro dele vivia um espaço vazio que permitia escolher o que queríamos guardar. Ocorreu-me aprisionar, lembranças, imagens, ou segredos, mas era tudo demasiado pequeno. Pensei melhor e decidi-me pelas coisas boas e bonitas e escrevi num papel branco; com fios dourados, letra aperfeiçoada, todas os acontecimentos bons que me tinham marcado a vida.
Ali naquele pequeno papel estavam todos os momentos que significaram. Não quis aprisionar segredos, nem imagens, nem coisas más, para quê fazer perdurar o que dói? Guardei só o que me faz sorrir e também chorar, mas é um choro diferente. Eu tenho um saco( todos temos), branco quase tão delicado como o cristal; quando vejo gestos belos, imagens belas ou apenas beleza sem gestos, nem imagens, o meu saco abre-se e dele saem lágrimas, mas são lágrimas tão boas que mais parecem beijos: esse é um choro diferente.
Resolvi assim que, no meu medalhão só vão caber beijos de lágrimas, bonitas lembranças e esperança de que nunca poderei aprisionar o que é mau porque é demasiado pequeno, escuro e sombrio e o meu medalhão é tremendamente grande e luminoso. Com a palma da mão fechei, devagarinho, o meu medalhão dourado...