Era quase noite e a lua começava a abrir a janela. Apressei-me porque a temperatura pedia uma camisola e a rua estava quase deserta. Ao pé do jardim de palmeiras, ouvi um choro, um lamento, um daqueles sons que parecem provir do mais profundo de um ser e que nos deixa enternecidos e preocupados.
Atrasei as minhas passadas tal qual se faz quando se atrasa um ponteiro de um relógio e ouvi, na minha respiração, a denúncia da ansiedade que sentia. Aproximei-me e reconheci-o, imediatamente: era o rei de Frígia(Midas). A face pálida denunciava o cansaço que o acompanhava.
Andava de um lado para o outro, chorava e falava, chorava e falava.
Viu-me e abanou a cabeça, quis que me afastasse. Tentei acalma-lo, mas fugia de mim, e andava e andava. Percebi que estava aflito porque tinha pedido a Dionísio que lhe concedesse o dom de transformar tudo onde a sua mão tocasse, em ouro. Ficou feliz no inicio, riu e fez uma festa: seria o homem mais rico de que há memória..
Porém a comida transformada em ouro, torna-se pedra, e o afecto de quem nos ama, traduzido em abraço, torna-se gelo. Midas tinha agora ouro, muito ouro, não tinha era comida, nem afecto. Escondia as mãos, porque até as lágrimas deixaram de ser lágrimas e eram pingos de ouro, quando as limpava. Tornou-se o rei do ouro, da solidão e da fome. Estava tão pobre agora... Lembrei-me do fim da estória, ele só teria de lavar as mãos em água corrente. Gritei-lhe que me acompanhasse porque ia ajuda-lo. Seguiu-me, andamos muito tempo, até encontrarmos um pequeno rio, de água azul e saltitante. Midas entrou no rio, as suas mãos brancas voltaram a ser humanas, tão humanas que me abraçou longamente. Midas tinha descoberto que sempre fora um homem muito rico, o ouro apenas lhe mostrou o que é ser pobre.
Este é um daqueles filmes em que se cruzam várias vidas, ideias e pensamentos. A ideia principal assenta na vida de um menino que perde a mãe e procura, sem cessar, descobrir a causa da sua morte e, acima de tudo, a forma de curar essa causa. Aparentemente talvez esta premissa nada tenha de extraordinário, mas reveste-se de interesse quando isto significa uma enorme prova de amor para com a sua mãe e ao mesmo tempo para com a humanidade em geral. Aqui, como na vida, cruzam-se os interesses e valores universais( e particulares) e descobre-se que só quem vive para amar consegue, de facto, viver! O risco é o que torna a caminhada intensa e empolgante.
Vale a pena ver o filme e pensar quantas coisas fazemos(ou não) pelas nossas convicções e paradigmas.
Ela olhou para a pequena escada e viu, no cimo, uma pequena luz fria e parda, hesitou mas a voz dele , suave e reconfortante, encaminhou o seu pequeno sapato, azul, aos degraus. Sentia o movimento dos passos no corpo e era quase como se os pés fossem independentes e tivessem vontade própria. O pensamento não existia, não era o pensamento que comandava os movimentos regulares que iam habitando os degraus.
-Se pensasse não confiava, ecoou dentro dela uma voz baixa e quase imperceptível. Delicadamente subia, uma após outra, as pequenas escadas de madeira e à medida que o fazia sentiu-se forte, teve a sensação que flutuava e que não existiam degraus ou subidas. Ela confiava e quando se confia tudo assume uma tonalidade leve e delicada. Não sabia porque razão ele insistira para que subisse a escada, mas agora que o fazia sabia que não seria ele que lá encontraria.
Os sapatos azuis continuavam, devagar, a sua melodiosa subida até chegarem a uma curva quase inexistente onde a luz se tornava mais intensa. Olhou para o chão e viu a sua imagem reflectida num pequeno espelho dourado. Percebeu que não tinha sido a voz dele que ela tinha ouvido e que tinha impulsionado a subida. A voz era a da confiança que ela tinha guardado em si, mas que, constantemente, abafava, como se faz quando se chora em silêncio. Pela primeira vez ela tinha confiado e tinha entrado no reduto da paz e da entrega, porque quem confia entrega-se, rasga o peito e deixa de temer o que quer que seja.
A confiança tem, no entanto, um pequeno "truque" só pode ser aberta e vivida por aqueles que percebem que ela existe, antes de mais, em quem se atreve a subir escadas e a encontar espelhos que devolvem a sua imagem e que ensinam a olhar, antes de mais, para si mesmos.
Ela pousou o espelho, na madeira da escada, e continuou a sua subida...