Colocou a ponta das meias no dedos dos pés e puxou-as vagarosamente até que cobrissem as pernas, depois escolheu um vestido branco, uns brincos azuis e uns sapatos também azuis. Passou pela cozinha e bebeu, à pressa, um copo de água. Escolheu as flores com cuidado: margaridas brancas, feto verde, gipsofila, envolveu-as num papel rosa muito bonito e arrumou-as numa cestinha de verga. Sentia que as pernas lhe tremiam ligeiramente, talvez porque era um dia com significado que ela não sentia, mas que reconhecia ser importante. Começou a andar, primeiro lentamente e depois, apressadamente, até que sentiu nos pés as batidas do coração( como se pés e coração fossem apenas um). Recordou tantos dias felizes, tantas risadas, os dias em que se sentava para contar o que vivia, o que os seus dias lhe davam. Recordou-o a ele, com mãos fortes e rugosas, a voz doce e forte, a meiguice do olhar, os abraços e a beleza do seu interior.
Engoliu em seco... como tinha saudades daquele interior tão bom e forte. Virou as flores para cima e olhou-as, demoradamente, ao mesmo tempo que andava. Era uma visita sem rosto, sem cor, sem som. Era um passeio que se repetia e que conduzia a uma pedra de mármore, fria e escura. Este passeio ela não o fazia apenas uma vez por ano, como a maioria das pessoas, ela fazia-o sempre. As flores continuavam, junto com os pensamentos e as acções, a ser a única coisas que lhe podia dar. Colocou as flores e saiu com um passo rápido. Era dia dos santos....
Naquele dia o Sol acordou cedo, vestiu um casaco comprido e abriu de par em par as janelas de madeira.
Olhei para ele; demoradamente, sem que me visse e deixei-me estar, quietinha, nesse doce namoro. Estava deitada, no pequeno barco de remos, com uma manta verde em cima do corpo e senti-me adormecida pelo embalo da água e o namoro com o Sol. Fiquei assim muito tempo sem que o barco se mexesse muito e sem que eu tivesse vontade de me mexer. No ar ouviam-se os gritos do rio, ao tocarem no casco, e o cheiro da maresia.
Na realidade eu nada fazia para que tudo acontecesse como devia acontecer. O Sol brilhava porque sim, a água seguia o seu curso e e barco fazia o seu caminho. Eu acompanhava-os sem saber porque o fazia. Eu não sabia navegar porque tudo navegava por mim.
Os dias sucediam-se e o namoro com o Sol, com o barco e com água, também. Mas um dia, daqueles dias em que o céu fica da cor do carvão, fiquei sem Sol, a água revoltou-se, os remos caíram e a manta foi para longe. Começou a chover, a chover muito e tinha de fazer alguma coisa para conseguir resistir à revolta da água.
Agarrei-me com toda a força que tinha ao barco, e com tempo comecei a remar com as mãos. Fi-lo com força, até que consegui que o barco encontrasse um pedaço de terra e se despedisse da água. Tinha conseguido vencer uma tempestade enorme. Sentei-me na areia e chorei,um misto de alegria e de tristeza envolviam-me e esforcei-me para entender, para me entender. Tinha sobrevivido, tinha aprendido a navegar. Essa aprendizagem só foi possível porque a tempestade me mostrou. Seria impossível viver se a tempestade não tivesse vindo e eu não aprendesse a navegar.
Conhecem aquela sensação de perda, quando nos separamos de um amigo? É esse o sentimento que experimento, agora que cheguei ao fim desta "quadrilogia". Já falei aqui dos livros anteriores e muitas pessoas me têm perguntado o que torna esta estória diferente. Não consigo responder concretamente a esta questão, no entanto consigo perceber que há uma amizade que perdura durante toda a vida. Essa amizade é a base para que todas as outras histórias se cruzem e vivam e que de certa forma envolve quem a lê. Talvez todos nós vivamos, durante a nossa vida, as mesmas históras, os mesmos receios, talvez todos tenhamos uma amiga genial que por vezes não sabemos se somos nós ou se é a outra/os. Este livro em concreto é dissecada a dor de uma mãe que passa pelo desaparecimento da filha. A sua postura, o seu não sentido, o medo que os outros têm, de quem sofre, como se isso fosse contagioso. São livros que vão ao fundo das nossas entranhas e que nos "obrigam" a questionar muitas opções e muitas direcções que seguimos ao longo da vida.