Comecei a subir a serra devagar. Contornava as pedras, procurava veredas e a respiração denunciava o cansaço que ameaçava visitar-me. Quando me abeirei do cimo procurei uma floresta que concebia como bela, a acreditar nos relatos que tinha ouvido.
Andei durante muito tempo, mas descobri, não uma floresta, mas um mundo encantado onde as árvores assumiam uma perfeição sem modéstia e a água saciava os campos. No meio do verde habitava um pequeno ajuntamento de pedras e uma gruta.Tentei olhar para dentro da gruta, mas estava muito escuro.
Preparava-me para me virar quando vejo Calipso, atrás de mim, com um olhar aborrecido. Cumprimentei-a, mas ela tentou afastar-me. Fiquei triste, mas nada lhe dei demasiada importância. Continuei a olhar as árvores a água, e a cada passo era a harmonia que me dava a mão e me acompanhava.
Arrumei a garrafa de água, na mochila, e preparava-me para regressar, quando Calipso me agarrou no braço.
Estava despenteada com olhos de choro e pediu-me se podia sentar-me por um instante. Acedi e ouvi-a atentamente. Contou-me que Ulisses estava preso na gruta e que ela tecia e fiava dia e noite para que ele gostasse dela, mas não conseguia. Ele só pensava em Penélope, sua mulher. Aconselhei-a a deixa-lo, mas ela dizia-me que não conseguia viver sem ele. Expliquei-lhe demoradamente como é difícil obrigar alguém a gostar dela e que fazer isso não demonstrava amor, mas sim egoísmo e mesquinhez. Começou a chorar e voltou para a gruta.
Fiquei à espera um longo tempo alimentando a esperança que ela deixaria Ulisses voltar para casa, mas tal não fez. Ulisses continuou um longo tempo enclausurado com Calipso, mas na sua cabeça e no seu coração só Penélope entrava. A sua prisão era um cativeiro ilusório porque ele nunca estivera, de facto, preso. Ninguém está preso quando ama.
Hermes forçou Calipso a soltar as amarras de Ulisses e ela, arrependida, ajudou-o a voltar a casa. Não se prende quem não nos ama...
O dia no trabalho acabou cedo vestiu, à pressa, o blusão em pele e correu pela escada de mármore cinzenta.
Chegou à rua parou e olhou as árvores que se agitavam, ficou um instante assim, a perceber se era dia ou noite e se as árvores falavam com ele ou com os outros. Atravessou a estrada, com passo apressado e bem medido, sentiu o cheiro das castanhas assadas e ouviu os risos das crianças que agora deixavam a escola.
Parou novamente e sentiu-se impaciente e sem vontade de voltar a casa. Ecoavam-lhe ainda as palavras que a Rita lhe dissera dois dias antes. Não a tinha visto desde esse dia e tinha passado as noites no carro.Tinha, no entanto, de voltar e ao mesmo tempo que ansiava vê-la, sentia-se magoado, receoso e experimentava a sensação de que o seu corpo era puxado para não voltar.
Conhecera Rita, na secundária, nunca mais se largaram. Cresceram juntos e descobriram os horizontes que a vida tinha guardado para eles. Tantas coisas que viram, tantas e tantas noites que não conseguiram dormir porque a promessa do que viria era maior do que o sono. Agora a ausência de sono tinha outra coberta, outra peça que corroía e que o massacrava.
Uma ideia, várias ideias que lhe pesavam, que o não deixavam continuar.
Agulhas e agulhas (pensava em agulhas a espetarem-se na pele), há dois dias que as agulhas não o largavam.. a Rita espetara-lhe agulhas, pensava. De certa forma era isso que sentia.
Ia perdoar-lhe tinha de o fazer, mas perdoar não era concordar com o que lhe tinha feito, não era abanar a cabeça e consentir. Perdoar era libertar-se das agulhas; das feridas e dos pesos, perdoar era abrir os braços e sentir que estava leve.
Escreveu-lhe uma mensagem: -como me encontras quando as agulhas me ferem a pele?
Ela respondeu, de imediato: - na pena de uma ave que se soltou e que agora navega no vento. É aí que vive o perdão e, é aí que te encontrarei.
Calou-se subitamente, nada do que dizia fazia sentido. As ideias estavam soltas, espalhadas e pareciam desordenadas, ou então tinham uma ordem própria que ela já não reconhecia. As pessoas falavam perto dela, via no movimento dos lábios o formato das palavras, vi-as nascerem, mas não as compreendia (há um momento em que deixamos de ler os sons porque o vazio do significado apodera-se deles).
Percebeu que falavam com ela, mas não foi capaz de responder e limitou-se a abanar a cabeça sem saber se afirmava ou se negava, fê-lo mecanicamente, sem um propósito.
O que via e sentia, mesmo sem palavras, era a imagem do Luís, deitado numa cama, um leito de ferro pintado de branco, tudo branco e frio. O Luís, de olhar escondido, alheio à vida que se desenrolava ao seu redor, ausente sempre que a mulher entrava e lhe fazia uma festa na cabeça.
Ele estava e não estava, vivia sem viver.
A mulher entrava; bem vestida, a cheirar a orquídeas, e todos os dias as orquídeas visitavam o Luís, fazia-lhe a festa na testa, com a ponta dos dedos: aconchegava-lhe a roupa e contava-lhe o dia com todos os pormenores, por vezes parecia que estavam os dois ausentes e que ali só estava a cama branca, de ferro e fria, muito fria...
Quando percebia que ele lhe fazia falta, uma falta que vinha de dentro de si própria, chorava um bocadinho e voltava a fazer-lhe uma festa.
Saia e voltava no dia seguinte, todos os dias à mesma hora.
No meio estavam as pessoas que morriam e viviam, que acordavam todos os dias e iam para o trabalho, estava o Inverno e o Verão e estava o Luís, suspenso e ausente.
Naquele instante eu não estava com as pessoas que falavam, não percebia as palavras, mas sentia o respirar forçado do Luís, sentia as suas lágrimas abortadas e percebia que enquanto falavamos existiam pessoas interrompidas que vivem em camas de ferro daquelas brancas e frias.