Estava frio e o meu casaco de lã não era suficiente para me manter quente. Comecei a andar com o objectivo de aquecer e encontrei perto de um lago aquele que mais tarde,vim a saber tratar-se de Tântalo. Tântalo estava desgrenhado, com umas olheiras fundas e um olhar perdido. Tentava beber da água do lago, mas assim que se debruçava para o fazer a água rapidamente desaparecia. Ele ficava desesperado e gritava. Esforçava-se, também, para apanhar frutos que pendiam por cima da sua cabeça, mas mal lhe tocava estes evaporavam. Isto repetia-se de uma forma constante e era um episódio comovente e perturbador. Aflita corri para junto da margem e perguntei-lhe se precisava de ajuda. Baixou os olhos e confidenciou-me que ninguém o podia ajudar. Contou-me entre soluções, choro e uma respiração ofegante que desejava demasiado ter os privilégios que os deus tinham, queria muito ter tudo, disse quase a sussurrar.
Sentei-me à beira do lago que aparecia e desaparecia e ouvi-o atentamente.
Bebia, eu, cada uma das suas palavras e ao mesmo tempo ia crescendo, dentro de mim uma miscelânea de pena, revolta, dor e censura. Contou-me que para além de ter tentado roubar alimentos que eram exclusivos dos deuses, tinha cometido um crime impensável. Pedi-lhe que continuasse, mas ele escondia a cara entre as mãos. Por fim disse, a gritar, que tinha morto um filho e o tinha servido como banquete aos deuses para testar a sua divindade. Quando eles descobriram fizeram com que o filho voltasse à vida e a ele condenaram-no à morte por fome e sede. Não consegui dizer nada. As ideias atropelavam-se com os sentimentos. Ele trocara um filho pela ganância de ser um Deus e de ter poder. Afastei-me rapidamente. Não podia, de facto, ajudá-lo.
O dia acordava luminoso e no ar sentia-se o cheiro dos pinheiros e das giestas verdes. Ela devia ter uns cinco anos, andava de saia vermelha de florzinhas, com laço. Demorou muito a aprender a fazer laços, mas quando o consegui foi uma alegria tal que não parava de mostrar a toda a gente que os sabia fazer. Penso que, talvez, devido a esta dificuldade ficou amante de laços, até hoje. Qualquer coisa; um frasco, uma simples folha de papel, desde que tivesse um laço encontrava nela um valor desmedido, quanto aos outros laços esses são, o que faziam a vida significar.
Nesse dia cheio de luz brincava com uma pequena boneca, de cabelos aos caracóis. Vivia no reino do faz de conta, pensava. Imaginava que aquele mundo, o mundo da infância, era uma dimensão irreal e um dia, conheceria um outro plano, onde a realidade e felicidade ainda seriam maiores. Os dias sucederam à noite, o sol à chuva, e a menina foi crescendo e a saia de laço vermelho foi guardada numa caixa forrada com papel de cetim. Descobriu-se num mundo em que não existiam bonecas cândidas e inocentes, mas viviam mulheres/homens que nada tinham de real. Cultivavam uma aparência desadequada, mentirosa, viviam existências falsas e pouco suas.Ela caminhava pelas ruas, entrava em edifícios, via pessoas, conversava com elas, mas sentia que não havia genuinidade, que afinal aquele não era o mundo que ela imaginava quando era pequena e se sentia a viver num mundo do faz de conta. Aquele era, definitivamente, o verdadeiro mundo do faz de conta. Entrou em casa, procurou a caixa forrada com o papel de cetim, viu a sua saia de laço vermelho, colocou-a à frente e viajou, durante algum tempo, para o mundo real e onde era, desmesuradamente feliz.
Durante muitos anos estudei e voltei a estudar a dualidade do corpo e da alma, li autores que defendiam a existência de uma alma descarnada e outros que afirmavam que não existe alma sem corpo. Perdi-me nessas considerações e, talvez, porque sou uma romântica, prefiro acreditar que a alma é uma espécie de lugar imaculado; que todos temos, ali, ao nosso alcance, que podemos encher de coisas boas e bonitas. Essencialmente, acredito que a alma é algo ligado a um mundo(embora por vezes limitado) que está acima das necessidades físicas/fisiológicas e que podemos, todos nós, preencher de uma forma boa.
Se a alma existe, sem corpo... penso que não, mas ela para mim é, de facto, de outro mundo, ainda que ligado a este. Uma espécie de arco-íris que liga o físico ao espiritual, sendo ela própria, também espiritual e metafísica. Nós somos a alma...
Já pensaram nesta questão da dualidade entre alma e corpo? O que é para vocês a alma?
Os papéis cobriam a grande mesa de madeira castanha com pé de galo. Não sabia há quanto tempo estava ali, em volta daquelas folhas de papel, mas nada do que sentia migrava para aquele papel descolorido. A mãe passava por lá, às vezes, mas não dizia nada. Espreitava apenas, fazia um leve sorriso, e continuava a sua missão pela casa. Muitas vezes se perguntara qual era, de facto, a sua missão, mas mal o fazia imaginava-a tal qual um anjo, com asas e tudo, desistia de ir mais a fundo com esta questão. Era alguém que estava atenta aos outros e isso, para já, era motivo de admiração e, até, de uma certa emoção. Continuou a virar os papéis, a escrever algumas coisas, depois punha o lápis na mesa, nova dança de papel e letras, mas não conseguia. Suspirou alto e a mãe gritou-lhe: - É preciso paciência.
Ficou surpreendido pelo facto da mãe ter dito alguma coisa, sobretudo com as palavras dela.
O que seria, exactamente, ter paciência. Deixou-se ficar quieto, com as mãos apoiadas na mesa e o olhar pregadinho no tecto. Mil coisas voaram-lhe pelo pensamento, mas rapidamente arranjou um cantinho que fixou. Nesse pequeno espaço, de pensamento, viu um pequeno feijoeiro. Imaginou-se a colocar a semente na terra, a rega-la, a tirar todas as ervinhas que queriam brincar e viu-se à espera. Descobriu-se a ter paciência que a semente rasgasse a terra à procura da verdadeira vida. O intervalo entre a semente que caiu na terra e o feijoeiro à descoberta da vida era a paciência. Manteve-se a olhar para o tecto e fechou os olhos, por um instante. No papel as palavras começaram a aconchegar-se, a distância entre o que estava escrito e o que ele queria que acontecesse era, de facto, a paciência. Naqueles dias o sol brilhou tanto que o feijoeiro cresceu muito, muito e era impossível contar todas as flores que tinha, por tão grande estar. O intervalo acabara...