Tome cuidado...
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Lembro-me de ter lido algures que Sidarta (príncipe budista), numa das últimas passagens da sua história, foi atacado por vários demónios.Padeceu atormentado por toda aquela ruindade, mas a todos venceu. Todos excepto um. No início não percebeu que demónio era aquele, porque não lhe compreendia a natureza, mas sabia que tinha sido vencido por ele. Soube depois que esse demónio era ele próprio.
Na realidade nós somos como uma noz. Com casca por fora e todo um conteúdo por dentro. O que nós somos, o que fomos e o que seremos apenas depende do que esconde dentro da casca de noz. Os outros dirão sempre muitas coisas, pensarão saber tudo. Muitas vezes tentarão magoar-nos (gratuitamente ou não),mas não são eles que o farão, seremos nós a magoar-nos.Os outros apenas vêm a casca rugosa e baça, cabe a nós vencer os medos e os demónios que se escondem no miolo da noz e perceber que, de facto,somos.
(imagem retirada da net)
Olhava os movimentos rápidos e sincronizados do amigo, em volta da roda que teimava em não se soltar. Não sabia quando tinha começado a amizade deles, mas sabia-a pura, desprovida de nenhum interesse que não fosse o que partilhavam. Na realidade talvez ele fosse a pessoa que mais tinha em comum com ela. Faziam tanta coisa juntos que era difícil dizer em que diferiam. Olhava-o e sentia-se agradecida por ele ter entrado na sua vida. Lembrava-se do dia. No início não gostara dele, mas pacientemente ele mostrara-lhe o quanto estava enganada e hoje era, sem a menor dúvida, muito importante para ela. Tentava protege-lo do calor e sentia-se um pouco envergonhada por lhe pedir tanta coisa.
Ele estava sempre lá.
Ao longe viu uma cara familiar alguém que tinha visto crescer. Ao vê-la seguiu em frente. Nos olhos corria um ódio que não entendia. Ali, no meio do nada, tinha percebido que as pessoas a quem mais se tinha dedicado, aquelas que imaginou para sempre na sua vida, seguiam em frente. Junto com ela estavam as não ilusões, as não expectativas. Mas eram esses estados de alma a mostrar-lhe que não esperar nada, por vezes é tão terno que lhe chegava a causar emoção. Ao longe as cigarras cantavam. Ele sentou-se no chão e ela ofereceu-lhe água. Olharam para o céu, viram as estrelas, mesmo sem elas lá estarem e riram - eram amigos.
Acabou de arrumar o último saco e colocou-o junto à porta. Olhou em volta e um sentimento fino e inquietante percorreu-lhe o corpo.De todas as vezes que partia sentia falta do que deixava, porque nunca se parte sem perder. Sabia que tinha de ir porque ficar era condenar-se a uma prisão que não seria só física, mas sobretudo existencial. Partir significava que a prisão física se mantinha, mas a outra, de alguma forma, seria ultrapassada (mesmo que só na cabeça dela).
Amava-o, sabia que sim e acima de tudo o seu sentido de dever forçava-a a continuar, a não o deixar, mas sentia-se presa, como uma flor cortada e enfiada numa jarra. Nunca percebera como tinha ficado assim, como estava assim. Talvez o tempo e uma conjugação de factores tivessem ajudado, provavelmente era de si. A verdade é que se sentia sempre entre dois mundos, entre duas realidades, como se fosse duas pessoas.
Acabou de se vestir e olhou-se rapidamente ao espelho, passou água pelo rosto e sentiu na sua frescura tantas coisas que voltou a passar mais uma vez e outra e outra até que se cansou obrigando-se a sentar. Ouviu ao longe o grito de um pássaro que não reconheceu, soltou o cabelo e desceu as escadas.