Passou pela mesa mansamente e sentiu com os dedos a madeira castanha. Olhou as cadeiras, ouviu os risos que outrora as vestiam. Viu em cada uma delas os rostos das pessoas que a tocaram e onde o calor imperava. Sentou-se à janela e viu os pardalitos brincarem entre os cedros, ouviu-lhes a melodia e adivinhou-lhe a maciez das penas. Estava frio e aconchegou a camisola nos ombros. Lá fora o brilho das luzes enfeitava o vidro e conferia-lhe, à vez, o tom azul, vermelho e verde. Ficou sentada durante muito tempo a olhar os tons, a beber a simplicidade das oscilações de cor. Ouviu música na rua, trauteou baixinho a letra e os espaços vazios começaram aos poucos a ser preenchidos. Nas cadeiras habitavam agora, os legítimos donos, as chamas da lareira acompanhavam as conversas e os risos. As memórias tão vivas pareciam ser a verdadeira realidade.
Um dos pardais deixou o cedro e empoleirou-se no parapeito da janela olhando-a longamente. Viram-se os dois com a admiração de quem se descobre.O presente e o passado perpetuados durante um olhar. A melodia, a luz, o calor e o instante do afecto que dura o que quisermos.
Soube ali, naquela cadeira, em frente à janela, o que era o Natal...
Sentou-se com o mar de frente, como se estivesse perante uma pintura de um qualquer pintor impressionista. Admirou-se perante a calmaria das ondas e aconchegou o lenço ao pescoço. No rosto desenhava-se,por vezes um leve sorriso que rapidamente se desvanecia e dava lugar a um semblante carregado e preocupado. Lembrava-se das últimas palavras que ouvira, o som trespassava-a e encontrava-a sempre que ela se tentava refugir em outras regiões do seu pensamento. Sempre fora assim, perseguida por sons, fugindo no eterno labirinto de si mesma. Adorava esconder-se e ria muitas vezes por pensar que só ela conhecia aqueles lugares. Muitas vezes era um espécie de triunfo, outras apenas uma forma de se proteger. O que é certo é que talvez ninguém fosse suficientemente forte para resistir a labirintos ou suficientemente curioso para os querer percorrer.
Uma brisa bateu-lhe no o rosto devagar e trouxe-lhe de volta o som, as palavras que se materializavam e a chamavam de louca. Ajeitou-se na pedra onde estava com as pedras cruzadas e murmurou: - não sou louca, mas a minha realidade é diferente da tua.
Esqueceu o relógio no bolso. Prometeu a si que não iria mais olhar para ele, enquanto durasse o dia. No bolso ficaria preso o carrasco pronto a decepar a vida, com os minutos e os segundos que não se coibiam de passar.
Riu alto, satisfeita pela sua vitória contra o relógio. Percebeu que a sua felicidade não duraria muito porque o tempo continuava a passar independentemente do preso que jazia no fundo do bolso.
Pensou nos Verões passados, nos Invernos ainda vivos dentro de si, mas desejou sobretudo as Primaveras por vir.
Pegou numa pequena pedra que atirou distraidamente contra as paredes de um um pequeno jardim onde os jacintos repousavam adormecidos. Continuou a caminhar por entre carvalhos amarelecidos e suspirantes de verdura ao mesmo tempo que olhava para as mãos lívidas e delicadas. O tempo, esse continuou a passar e a cada minuto contava, apenas, o que se fazia com ele. Apeteceu-lhe correr, abraçar o ar que não via, agradecer as cores, os cheiros, mas refreou-se por achar que o segundo em que o fizesse teria passado logo a seguir e ela ficaria sem nada, de novo. Por fim percebeu, depois de muito caminhar, que o tempo seria preenchido pelos pequenos instantes que iriam passando e que dependia dela e do que estava dentro dela mantê-los, ou não. Meteu a mão no bolso, tirou o relógio e deixou-o estendido algum tempo sobre a mão. Devagarinho colocou-o no pulso e olhou para ele durante vários momentos do dia, sem pressa e sem medo dos segundos que passavam e em que ela vivia.