A descoberta da alma
Uns acordes de piano vindos da sala ao lado interrompiam-lhe, de tempos a tempos, o pensamento. Suaves, persistentes, lancinantes... Passou as mãos pela mesa de pinho e sentiu a maciez da madeira nos dedos. Continuou a percorrer cada canto daquele que, outrora, tinha sido o seu quarto. Conseguiu ouvir, longinquamente, o seu riso quando o pai a convidava para dançar, recordou o conforto da mãe a aconchegar-lhe as cobertas. Lembrou-se do abandono que sentia quando se julgava segura. Viu e sentiu outro mundo. Viveu por momentos em outro tempo que lhe parecia, agora, quimérico. Teve saudades desse tempo, mas sentiu saudades do outro: daquele que estava por vir. Esse desconhecido seria sempre um entrosado do outro que apenas existia tenuemente. Sacudiu a saia lilás e puxou o cabelo para o lado. Colocou a mão na porta e preparou-se para sair, mas sentiu a mão dele, quente e macia, na sua pele. Deixou-se ficar, quieta, com os pensamentos congelados e sentiu... permitiu-se sentir. Precisava de encontrar a sua alma. Essa busca e esse encontro talvez lhe custasse a vida, não o sabia ainda. Como uma espécie de escrita revelada apenas através da leitura de um código secreto, a sua alma precisava de uma chave. Não de ferro, ou de bronze... sabia, apenas, que a graciosidade de algumas almas, desconhecidas, impelia à descoberta da sua própria graciosidade.