Caronte e o sonho da vida...
(Caronte ilustrado por Gustave Doré, para a Divina Comédia)
A noite tinha aberto a porta e deixou entrar todas as sombras que a falta de luz lhe tinha oferecido. Caminhei ao longo do rio apalpando, aqui e ali, alguns ramos que me mantinham em pé. A cantiga do rio era estridente e ouvia-a com atenção. Algumas vezes parecia até que ouvia as vozes do rio a falar comigo. Coloquei a mão sobre o ouvido, tentei perceber o que diziam, cheguei a imaginar que me chamavam, que sussurravam o meu nome, mas em breve desisti de tentar decifrar os sons. Continuei a andar até acercar uma espécie de clareira onde a água assumia a forma de lago. Apercebi-me de um barulho estranho e vi um pequeno fogo que me permitiu reconhecer, Caronte. Fiquei contente e corri para ele. Estava com a barba maior, mais branca e com aspecto envelhecido, vestia uma túnica preta e uma sandálias castanhas, com atilhos. Gostou de me ver e ficamos algum tempo a conversar sobre o tempo, a vida e o que fazíamos. Contou-me que estava muito cansado e desgostoso. Transportar quem já não vive não é bom, faço um trajecto absurdo, disse-me. Ele gostava era transportar vida e recordou-se daquelas vezes em que o fez e que foi punido. Levar as pessoas para o Hades era algo, no momento, que o entristecia. Ele falava e eu sentia-me envergonhada, porque sempre tinha pensado que ele gostava do que fazia, que recebia com satisfação a moeda para que as pessoas fizessem o derradeiro trajecto, muitas vezes até o ajuizara mal, porque pensava nele como um ser ganancioso e calculista. Estava com estes pensamentos e olhava para a barca, que estava encostada à margem e a uma pedra com musgo. Voltei a ouvi-lo, ele queria transportar vida, dizia-me. Peguei-lhe na mão, enrugada e fria, pedi-lhe que fechasse os olhos e imaginasse uma viagem, em que ele era o barqueiro,mas onde só viajavam crianças. Ele sorria de olhos fechados. Finalmente tinha transportado vida.