Dos campos de papoilas às escovas para o coração
Abriu os olhos e ficou um momento a pensar onde estava e se seria dia ou noite. Levantou-se devagar e puxou pelo roupão azul que estava ao fundo da cama. Pelas cortinas desviadas entrava o ar fresco da manhã. Olhou para a rua, para as árvores que dançavam e ficou assim durante um pouco anestesiada pelo dia que começava embrulhado na mortalha do outro que já se tinha esvaído.
Escolheu a roupa peça por peça e vestiu-se com cuidado olhando no espelho a sua imagem. Por vezes era-lhe difícil encontrar correspondência entre a imagem e aquilo que ela sentia ser. Mirava-se, tocava no cabelo, olhava-se nos olhos, mas na maioria das vezes pensava tratar-se de outra pessoa. Como se ali só estivesse um corpo desprovido de vida, mas sem estar morto. O resto passeava alegremente num campo de papoilas vermelhas onde o tempo não existia e as estrelas nunca dormiam.
Passou a escova grande e castanha pelo cabelo e suspirou, o cabelo ficou arranjado e bonito. Olhou a escova, pousada na sua mão e teve pena que não existissem escovas para pentear e arranjar o coração.