Esperei pacientemente até que a casca se assemelhou a um conjunto de teias de aranha. Um rasgão aqui, uma rachadura acolá. Comecei a ver uma penugem amarela. Primeiro apenas num minúsculo buraquinho e depois, mais e mais, até distinguir uma cabecinha e um lindo bico alaranjado. Era um pequeno ser com lindas asas. Podia voar, cruzar os céus e fazer as mais elegantes piruetas. Foi isso que lhe desejei, foi assim que o vi.
O tempo passou e os voos iniciais começaram por ser logos, mas paulatinamente encurtaram de distância. Todos os dias alguém lhe cortava um pedaço de asa. Tentava voar e caia. Um dia desistiu de voar e foi infeliz.
Voltei a vê-lo encolhido debaixo de uma casca. Desta vez não via teias de aranha e a casca estava muito dura. Tive de lhe ensinar que todos temos um par de asas suplentes. Essas asas ninguém vê e nem corta. Somos os seus únicos senhores e percorrer os céus ou caminhar nas montanhas depende apenas de nós. Ele percebeu e escancarou, uma vez mais, a sua cortina. Voava de novo, ou começava a voar.
O sol queimava-lhe as faces lívidas e jovens. Não se mexia, não se podia mexer. Encetar um movimento significaria voltar à realidade, à sua realidade. Deixou-se ficar, como um insecto à espera que a presa se vá embora. Enrolou-se em si mesma e sentiu o tempo a percorrer-lhe o corpo. Primeiro mansamente e depois de uma forma tão assolapada que quase teve de gritar. Mas não fez. Nunca o fazia. Gritar era para os fracos ou para aqueles a quem era permitido virar-se ao contrário. Conservou-se quieta e as pessoas que passavam ali não a viam. Nunca ninguém a via. Não por ser invisível, porque não era, mas porque a sua visibilidade era de tal forma bela que perturbava. E o tempo continuava a sufoca-la com os seus dedos fortes na garganta, queria-lhe o ar. Era um ladrão de sopros, o tempo.
Ao lado as pessoas trabalhavam; resignadas. Mas não sabiam que o estavam. Dificilmente alguém sabe que se resignou. Iludem-se os sentidos, faz-se de conta que se luta, pensa-se na felicidade. Resignados, era isso que via. Autómatos que ignoram ou tapam a verdade com rotinas e trabalhos. Enrolou-se mais em si. Viu uma pequena joaninha, teimou em não se mexer, mas a joaninha olhava-a e sacudia as asas. A joaninha tinha pressa, a joaninha tinha asas, a dona das pintinhas não gostava de resignados.
No meu périplo pelos símbolos aconteceu-me cruzar com as asas que esvoaçavam, frente a mim indiferentes à minha preocupação em perceber-lhe o significado, estavam soltas e desapareceram para longe deixando só a enorme vontade de lhe perceber o simbolismo.
Assim as asas começam por ser o maior símbolo da leveza ou libertação e são a expressão de despojamento de um peso, significam leveza e são, acima de tudo, a representação do alçar voo. Desmaterialização, leveza espiritual, subtileza, alívio ou libertação da gravidade terrestre.
Nas mais diversas tradições as asas nunca são recebidas e sim conquistadas, mediante uma educação iniciática e purificadora, por vezes longa e arriscada. Nas alegorias espirituais representam a alma em ascensão e a saída do corpo; poder de voar e bater asas é comum aos imortais.
Na Bíblia são constantemente associadas à espiritualidade ou espiritualização dos seres que as possuem, relacionam-se com a divindade e a tudo que dela pode se aproximar, como por exemplo, os anjos e a alma humana. Na tradição cristã, as asas significam o movimento aéreo, leve e simbolizam o pneuma. Por vezes, nas lendas e mitos, estão relacionadas à vitória, convêm aos heróis que vencem e matam os monstros e feras que atormentam os homens.
Em geral as asas exprimem uma elevação em direcção ao sublime, um impulso para transcender a condição humana.
Voem muito!!
Fonte:
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos, Teorema, 1992
Acordou cedo com o ladrar chamativo do Rebelo que não parava de dar voltas sinónimo de uma urgência que a fazia, sempre, sorrir.
Vestiu umas calças justas de lycra preta e um camisolão cinzento e grosso. Não estava demasiado frio, mas gostava de sentir o conforto que a lã lhe dava quando tocava a pele. Engoliu um chá de camomila e uma torrada e encaminhou-se, com Rebelo, para uma floresta perto da sua casa.
Rebelo era branco com uma pequena mancha castanha. Era um cão enérgico, brincalhão e estava com ela há cinco anos. Não se lembrava quando começou a amizade entre eles, mas ela podia garantir que ele sempre estivera na sua vida. Rebelo pisava as folhas com que castanheiros tinham vestido o caminho, sempre a ladrar e a abanar a cauda. De vez em quando olhava para trás, ou ia ao pé dela de forma a ganhar uma vigorosa festa no pêlo sedoso. Ao fim de algum tempo ela sentou-se na berma do caminho e o cão continuou a farejar e a saltitar, de um lado para o outro, e ao redor dela. Finalmente encontrou uma pequena abelha e começou a esticar as patas, a rosnar e assim ficou enquanto a abelha teve paciência e se manteve na brincadeira.
Ela sentada na berma sentia-se ausente, estava ali e não estava. Pensava sempre em outras coisas, em coisas que não tinha, em situações que precisava. Cruzou as pernas e colocou o queixo em cima dos joelhos acompanhando, desinteressadamente, os movimentos do Rebelo.
Lembrou-se do amigo João, de quem gostava, e tinha pena. Gostar e ter pena, murmurou. Mas gostar e ter pena é, de alguma forma, aprisionar sentimentos, pensou... Quando se gosta há penas, mas é nas asas que se ganham para voar. As penas só servem para mascarar os sentimentos, para dizer que se gosta um bocadinho, mas não se ama. O amor é um voo sem destino, mas sem penas.
Rebelo ladrou a olhar para ela numa espécie de concordância com o seu pensamento.
-De ti não tenho pena, Rebelo, disse-lhe ela, ao mesmo tempo que lhe afagava o pêlo. Tu fazes com que eu ganhe asas; tu dás-te incondicionalmente, fazes com que eu também me dê incondicionalmente.