Encontrei Atlas vagueando num planalto de trigo. Estava dobrado e uma ruga funda atravessava-lhe a testa. Não me reconheceu logo, mas quando me aproximei saudou-me e desenhou um sorriso nos lábios.
Falamos longamente e via que se contorcia com dores. O mundo era pesado, disse-me quando me viu olhar. Sabia do castigo de Zeus e tinha noção de que Atlas estava condenado a carregar nas suas costas o peso do mundo, para sempre, ainda assim pensava em algum modo de o aliviar. Falava-lhe de aves raras e do mar, mas ele não me ouvia. Era o peso que lhe roubava a atenção. Caminhamos de mãos dadas. Eu, Atlas e o mundo. Mas não me senti bem,o peso dele começou a evadir-me e encontrei-me fraca e sem forças.
Estava quase a sentar-me no chão quando Hércules se aproximou, muito simpático e sorridente pedindo a Atlas que lhe colhesse as maçãs de ouro e que em troca ele lhe segurava o mundo.
Atlas estava tão cansado que aceitou prontamente.Nunca o tinha visto tão alegre. Correu, pulou e puxou-me para dançar-nos no meio do trigo. Rimos de tudo e de nada.
Assim que avistamos as maçãs corremos a colhe-las e entregamo-las a Hércules. No entanto, assim que lhas entregamos Hércules voltou a colocar o mundo nas costas de Atlas e fugiu. O peso voltou.
Ninguém pode carregar o mundo sozinho, pensei. Estava quase a oferecer-me para dividir o peso com Atlas, mas o deuses libertaram-no do peso do mundo e castigaram Hércules.
Os pesos do mundo vão sendo carregados por quem verga a cabeça e os aceita.
O dia no trabalho acabou cedo vestiu, à pressa, o blusão em pele e correu pela escada de mármore cinzenta.
Chegou à rua parou e olhou as árvores que se agitavam, ficou um instante assim, a perceber se era dia ou noite e se as árvores falavam com ele ou com os outros. Atravessou a estrada, com passo apressado e bem medido, sentiu o cheiro das castanhas assadas e ouviu os risos das crianças que agora deixavam a escola.
Parou novamente e sentiu-se impaciente e sem vontade de voltar a casa. Ecoavam-lhe ainda as palavras que a Rita lhe dissera dois dias antes. Não a tinha visto desde esse dia e tinha passado as noites no carro.Tinha, no entanto, de voltar e ao mesmo tempo que ansiava vê-la, sentia-se magoado, receoso e experimentava a sensação de que o seu corpo era puxado para não voltar.
Conhecera Rita, na secundária, nunca mais se largaram. Cresceram juntos e descobriram os horizontes que a vida tinha guardado para eles. Tantas coisas que viram, tantas e tantas noites que não conseguiram dormir porque a promessa do que viria era maior do que o sono. Agora a ausência de sono tinha outra coberta, outra peça que corroía e que o massacrava.
Uma ideia, várias ideias que lhe pesavam, que o não deixavam continuar.
Agulhas e agulhas (pensava em agulhas a espetarem-se na pele), há dois dias que as agulhas não o largavam.. a Rita espetara-lhe agulhas, pensava. De certa forma era isso que sentia.
Ia perdoar-lhe tinha de o fazer, mas perdoar não era concordar com o que lhe tinha feito, não era abanar a cabeça e consentir. Perdoar era libertar-se das agulhas; das feridas e dos pesos, perdoar era abrir os braços e sentir que estava leve.
Escreveu-lhe uma mensagem: -como me encontras quando as agulhas me ferem a pele?
Ela respondeu, de imediato: - na pena de uma ave que se soltou e que agora navega no vento. É aí que vive o perdão e, é aí que te encontrarei.