Saiu de casa quando o sol já arrumara as malas e esperava que a lua o substituísse na difícil tarefa de transformar a penumbra em luz.
Fechou a porta com força, atrás das costas, e apressada desceu as escadas que, naquele dia, pareciam ter diminuído tal a pressa com que as calcava. Precisava respirar, sentir na pele a certeza que ainda vivia. Meteu as mãos nos bolsos e encolheu os ombros. As poucas pessoas que vagueavam pelas ruas dirigiam-se, apressadamente, para casa e davam por finalizado mais um dia, mais uma rotina, que nunca se sabia se era uma constituinte de si ou apenas uma obrigação penosa e muitas vezes desestruturante da própria pessoa. Os passos começaram a estreitar e aos poucos começou vagarosamente a arrastar os pés pelo empedrado irregular da calçada. Sentia dores nos pés, mas mesmo assim teimava em continuar como se quisesse incutir em si uma forma de punição por algo que tinha feito e que não sabia. Pensava em todos os dias em que apertara a realidade e se deixara guiar por ela, remoía, também, em todas as vezes que matara essa realidade e seguia apenas o que sentia. Nesses dias nascia, uma e outra vez, nos outros morria. Há tantas mortes dentro de uma vida. Um espesso nevoeiro bailava-lhe sobre os olhos e envolvia-lhe, agora a cabeça. Era um cenário misterioso dando a sensação que ela flutuava ao invés de andar. Nesse envolvimento caminhavam, lado a lado, a realidade e a sonho. Não voltou para casa, nesse dia...
Estava deitada em cima da cama, barriga sobre a colcha azul de algodão e a cabeça de lado. Ela olhava os movimentos precisos daquela pequena boneca que coordenava numa pequena perna, a dança, a magia a delicadeza e a perfeição. Ao seu lado um pequeno príncipe com olhos de vidro que lhe acompanhava os movimentos e impedia, acima de tudo, que não caísse. Ela era a rainha da caixa, mas seria impensável a sua existência, sem que ele a acompanhasse.
A música continuava enquanto a corda durasse e a pequena caixa não se fechasse. Durante anos ela pensou na pequena bailarina, fechada na caixa de madeira, acompanhada, por alguém que lhe evitaria uma; ou duas ou mesmo todas as quedas, que ela viesse a dar. Sonhava com isso, idealizava que a vida era assim. Todos os dias os amigos ironizavam com os seus pensamentos, acusavam-na de ser sonhadora, diziam-lhe que os sonhos eram dos artistas. A vida real, justificavam, era bem diferente. Ouvia e durante muito tempo tentou que esses pensamentos, fossem também os seus pensamentos, mas nem por um momento deixava de acreditar que tudo se resumia a uma caixa de música e a uns braços que sempre a amparariam em caso se tropeção.
Houve um momento, não conseguia precisar quando, percebeu que estava numa dimensão diferente das pessoas que ela conhecia. Sabia mais coisas, conseguia ver para além do que era a corda que fazia a música tocar. Conseguia pressentir que a música ia muito para além do som real, que a conseguia ouvir independentemente de ela estar a ser , tocada, verdadeiramente. Sabia que aquela música da caixa, nem era bem real, porque tinha sido aprisionada dentro de uma caixa e apenas repetia, momento após momento, o mesmo de sempre. Todos os dias sabia de alguém que tinha escolhido a vida matemática, segura, da corda que tocava a música. ninguém quis ser bailarina. Dia após dia pressentia felicidade na vida das pessoas que rodavam a corda da caixa, mas ela acreditava na dança e na bailarina.
Passaram muitos anos até que percebeu que ela sempre estivera dentro da caixinha de música e que era a bailarina que todos diziam não existir...
Não me lembro exactamente onde, mas recordo que ouvi uma história infantil sobre uma vaquinha que um dia ficou doente e pensando que era da erva, deixou de comer. Meteu na cabeça que só poderia comer trevos de quatro folhas. Como sabemos os trevos são raros e escusado será dizer que a vaquinha, sem comida, foi ficando cada vez mais doente. Os outros animais bem tentavam convence-la a comer erva, mas ela teimava em não comer. Um dia, um galo, já desesperado de a ver assim, resolveu arranjar uns óculos e pintar-lhe vários trevos de quatro folhas. Convenceu-a de que o problema era a sua deficiente visão e que precisava de ter uns óculos, ela acreditou. A partir dali só via trevos de quatro folhas e rapidamente melhorou.
Hoje dei comigo a pensar na vaquinha e na sua história. Por vezes andamos na vida, em vários campos, vemos tantas ervas bonitas, mas obstinados só procuramos os trevos. Aqui e ali as ervinhas chamam-nos, puxam-nos, mas teimosamente só queremos trevos. Muitas vezes os trevos são indigestos, fazem-nos mal, mas teimamos em os preferir. A dada altura dos nossos percursos temos de procurar uns óculos que nos permitam ver com clareza, que nos mostrem como é a realidade. Essa pode ser muito diferente da que inicialmente pensavamos. Estes óculos devem permitir ver longe e, sobretudo, devem mostrar-nos, o que precisamos e o que queremos. Há tantos campos verdes, por aí, só é preciso olhar bem. Nunca podemos esquecer, no entanto, que o campo mais verdejante é o que vive dentro de nós.Precisam de óculos?