Esperei pacientemente até que a casca se assemelhou a um conjunto de teias de aranha. Um rasgão aqui, uma rachadura acolá. Comecei a ver uma penugem amarela. Primeiro apenas num minúsculo buraquinho e depois, mais e mais, até distinguir uma cabecinha e um lindo bico alaranjado. Era um pequeno ser com lindas asas. Podia voar, cruzar os céus e fazer as mais elegantes piruetas. Foi isso que lhe desejei, foi assim que o vi.
O tempo passou e os voos iniciais começaram por ser logos, mas paulatinamente encurtaram de distância. Todos os dias alguém lhe cortava um pedaço de asa. Tentava voar e caia. Um dia desistiu de voar e foi infeliz.
Voltei a vê-lo encolhido debaixo de uma casca. Desta vez não via teias de aranha e a casca estava muito dura. Tive de lhe ensinar que todos temos um par de asas suplentes. Essas asas ninguém vê e nem corta. Somos os seus únicos senhores e percorrer os céus ou caminhar nas montanhas depende apenas de nós. Ele percebeu e escancarou, uma vez mais, a sua cortina. Voava de novo, ou começava a voar.
Sentou-se na mesa do café que ficava em frente à escola, onde ela trabalhava. Tirou um cigarro e acendeu-o, nervosamente. Sabia o que ela lhe ia dizer, pressentia-o, pelo menos. Desde que ela lhe dissera que tinha um assunto importante para falar com ele, que sabia o que era. Atirou uma baforada para longe e amachucou, com os dedos, o papel da caixa dos cigarros. Sentia-se pequeno cada vez que pensava nela, não porque ela o fizesse sentir pequeno, mas porque perto dela todos eram pequenos. Sabia-lhe a força, descobria-lhe, em cada gesto, a capacidade desmesurada de amar.
Admirava-lhe os olhos brilhantes quando se entusiasmava com um tema. As palavras envolviam quem a ouvia, era impossível que assim não fosse. Ela punha uma tal força e entusiasmo que qualquer tema, mesmo os mais insignificantes ganhavam dimensão. Ela colocava amor em tudo, ela punha-se a si, à sua alma, em tudo o que tocava.
Imerso nestes pensamentos, viu-a chegar, com um vestido verde, elegante, de sorriso na cara e cabelo esvoaçante. Cumprimentou-o com um beijo, pareceu-lhe ainda mais bonita. Acompanhava os movimentos dos lábios e adivinhava as palavras que ele já conhecia, sempre sem ouvir. Invejava-a e estava contente, mais que isso, estava feliz por ela e por ele, mas não conseguia dizer-lhe. Ao contrário tratou de encontrar aspectos negativos, amarras que a prenderiam e não a deixariam voar, algemas que a fariam estar perto dele e não lhe descobrir a fraqueza. Tempos depois, na mesma mesa, percebeu o mal que lhe tinha feito e viu-a tal pássaro numa gaiola. Deu-lhe as chaves e ela convidou-o a voar com ela...
Olhei para o pinheiro alto, que tinha a sua enorme cabeleira, verde, coladinha ao céu. As pinhas enfeitavam-lhe os ramos como brincos em orelhas de senhora. Suspirei e olhei demoradamente para o azul e verde que agora me entrava pelos olhos. Uma das pinhas caiu e veio devagarinho bater-me no pé ficando ao lado de outras pinhas que já descansavam. Pensei no seu propósito, na justificação da sua queda, e percebi que as pinhas não temem o vento nem a queda porque elas realizam a sua natureza, realizam-se a si próprias com a descida. As pinhas vivem para voar e voam!
Mesmo que o trajecto seja insignificante, mesmo que ninguém acredite que elas voam e digam que só caem, elas sabem o que é sentir, por momentos, o medo do desconhecido, a hesitação, mas ao mesmo tempo a vontade enorme de fazerem o que sempre quiseram. No inicio estão fechadinhas, brincam umas com as outras e aproveitam os pequenos sopros, que o vento lhe oferece, até ao dia em que as suas diminutas asas, agora abertas, pedem mais do que sopros, elas querem o vento por completo, elas precisam de saber como é Voar.
Deixam-se ir, temerosas, sem saber se vão resistir à queda, mas voam e voam muito, porque é dentro delas que vive o maior voo. Quando tocam no chão, nada mais importa do que aquilo que saborearam até lá chegar. E o que sentiram é de uma tal dimensão que nem dão pela queda. Para que interessa uma queda quando se voa??