Um grito de pássaro
Acabou de arrumar o último saco e colocou-o junto à porta. Olhou em volta e um sentimento fino e inquietante percorreu-lhe o corpo.De todas as vezes que partia sentia falta do que deixava, porque nunca se parte sem perder. Sabia que tinha de ir porque ficar era condenar-se a uma prisão que não seria só física, mas sobretudo existencial. Partir significava que a prisão física se mantinha, mas a outra, de alguma forma, seria ultrapassada (mesmo que só na cabeça dela).
Amava-o, sabia que sim e acima de tudo o seu sentido de dever forçava-a a continuar, a não o deixar, mas sentia-se presa, como uma flor cortada e enfiada numa jarra. Nunca percebera como tinha ficado assim, como estava assim. Talvez o tempo e uma conjugação de factores tivessem ajudado, provavelmente era de si. A verdade é que se sentia sempre entre dois mundos, entre duas realidades, como se fosse duas pessoas.
Acabou de se vestir e olhou-se rapidamente ao espelho, passou água pelo rosto e sentiu na sua frescura tantas coisas que voltou a passar mais uma vez e outra e outra até que se cansou obrigando-se a sentar. Ouviu ao longe o grito de um pássaro que não reconheceu, soltou o cabelo e desceu as escadas.